A humanidade sempre deu um jeitinho de encurtar distâncias. Até pouco
tempo, a carta era a principal forma de conexão entre pessoas de territórios
diferentes. Não tinha as vantagens de uma comunicação instantânea como é o caso
do facebook ou do twitter. A internet possibilita que com um simples enter, pressionado
em Salgueiro, uma mensagem de texto chegue ao destinatário, em tempo real, na
China ou no Japão. Ou seja vista, no mesmo instante, por internautas de
qualquer um dos seis continentes do planeta.
Maravilha todos esses avanços! Aumenta a eficiência e dá para camuflar um
pouco da saudade.
A vida, no entanto, é feita de perdas e ganhos. Ganhou-se
instantaneidade. Perdeu-se um pouco da emoção. Clarice Lispector perfumava as
cartas que escrevia. Veja que legal, enviar seu cheiro, pelos Correios, para um
amigo ou um namorado! Mandar uma florzinha que passou alguns meses secando
dentro de um livro grosso. E, o que eu acho mais fantástico de tudo isso,
reconhecer a caligrafia. Uma espécie de digital. Nenhuma grafia é igual a
outra.
Eu ainda escrevo bastante, em papel (real, não virtual). Faço diários. E,
essa semana, me peguei pensando como seria a letra de uma certa pessoa
conhecida minha. Considero algo bem importante. Se a escrita é grande ou
pequena. Se inclina para a direita ou para a esquerda. Se é gordinha ou
fininha. Se é toda em caixa alta... Uma identidade que nem precisa de
assinatura.
E pegar no papel? Receber das mãos do carteiro e abrir o envelope
imediatamente, de tanta ansiedade e, ao mesmo tempo, de emoção.
Ainda não consigo enxergar a comunicação virtual preservada no decorrer
de um longo intervalo de anos, como acontece com as tradicionais cartas.
Encontrei preciosidades que resistiram há algumas décadas. A família de
seu Edson Filgueira compartilhou, comigo, e agora com vocês, leitores, três
cartas. Duas de 1943, remetidas de Salgueiro, por seu Cornelinho, um
comerciante importante da cidade, para o afilhado, no caso, Seu Edson, em
Ouricuri. Percebam o tom de extremo carinho na seleção dos termos e, também, as
marcas do tempo, que me impediram de identificar alguns trechos (os quais serão
indicados por interrogações, nas transcrições, logo a seguir). Numa delas, seu
Cornelinho descreve o exato horário em que está redigindo. Era um réveillon.
Rompeu o ano escrevendo para o afilhado e se perguntando se, no próximo 31 de
dezembro, estaria vivo. Sensibilidade documentada para outras gerações. Imaginaria,
Seu Cornelinho, que o conjunto papel-texto-caligrafia-emoção, produzido por
ele, seria publicado num blog, no ano de 2013, para o acesso a partir de
qualquer lugar do planeta? Acho que não.
A outra correspondência, mais recente, de 1978, foi emitida de Recife, por Dr. Orlando
Parahym, médico, político e professor, também, para Seu Edson, em Salgueiro.
Uma carta de amizade que, assim como as demais, é guardada com excessivo
cuidado e carinho pelos filhos e, com certeza, passará aos netos e bisnetos de
Seu Edson... E, do jeito que a tecnologia avança, cada vez mais rápido, quem
sabe chegue a virar peça de museu, seguindo em frente, como retrato de um
romantismo ultrapassado.
CARTA 01
Ano de 1943
CARTA 02 (3 páginas. A família suprimiu algumas folhas)
Ano de 1943
CARTA 03
Ano de 1978
Transcrições
CARTA 01
Salgueiro, 27 de abril de 1943
Edson
Abraço-te.
Faço votos pela ?texto não identificado? saúde.
Dou por meu poder tua prezada
carta da qual foi portador o Pelucio.
Fiquei muito satisfeito em saber
que vais passando bem. Tuas calças e camisas estão na costura, só não vão hoje devido
a Semana Santa; mas, na primeira oportunidade, ?enviarei?. Ficamos sem ?alteração?.
Remeto uma ?camisa? de meia. Tenho fé em Deus que ficará curado e de
terminarmos os dias juntos.
Adeus.
Todos te enviam lembranças.
Do padrinho e muito amigo,
Cornelinho.
--------------------------------------------------------------
CARTA 02
Salgueiro, 31/12/43
Edson
Deus te abençoe
São 12 horas da noite, dentro em
breve estaremos em 1944. Hora de muita saudade e apreensões. Quantos entre nós
que agora estamos aguardando a entrada do ano será vivo em 31 de dezembro de
1944? Nesta hora me vem recordações profundas do tempo em que via no meu lar
você, Vieira, hoje separados de mim por força do destino e circunstancias
alheias a minha vontade. Paciência. Pode ser que ainda os veja reunidos.
O ano de 1943, foi um ano muito
comercial, encerramos os nossos apurados em cerca de 750,000 $ 000. Penso que
aparecerá algum lucro. A tal uzina de caroá é que tem me feito criar cabelos
brancos pois o tal lacambeche só vive desmantelado.
Notícias de casa. João está com a
nossa casa de Bezerros, pois nos comprou o sítio e vai fazendo as compras aqui
na loja com 10% de aumento do custo em Recife. Papai vai naquela vida de sempre,
um dia melhor, outro se queixando. Ultimamente tem andado muito doente.
Chiquinho e Toinho vão bem.
Fica aqui um convite para vir
passar a semana santa comigo. Pagarei todo o transporte. Você já deve ter sido
aposentado nos comerciários. Ainda não sei quanto irá receber. O que precisar
mande dizer. Não quero que lhe falte nada. Adeus. Aceite nossas saudades.
Do padrinho amigo,
Cornelinho.
--------------------------------------------------------------
CARTA 03
Recife, 18 de julho de 1978
Meu prezado
amigo Edson:
- Venho cumprimentá-lo pelo casamento de sábado. Desejo aos nubentes todas
as felicidades possíveis. Para você e sua esposa sinceras congratulações.
Particularmente a Você, como pai, envio cordial abraço pela felicidade de
ver a nova geração encaminhando-se nos seus próprios destinos. Felicito-o pela
maneira como V. tem sabido conduzir a família numa época em que os valores
tradicionais se deterioram a olhos vistos. Tudo reflete falhas na educação
doméstica. Entretanto você soube manter a fibra moral dos velhos chefes de
família do sertão e por isso merece toda a admiração. Receba forte e sincero
abraço do velho amigo que muito o estima.
Orlando.
--------------------------------------------------------------
Seu Edson Pereira Filgueira tem 94 anos e reside em Salgueiro com a esposa Dona Maria. Agradecimentos ao casal e à neta, Elizabeth, que colaborou cedendo as cartas para a publicação.
Raquel, sua iniciativa foi brilhante. Com certeza meu pai aos 94 anos, vai ficar feliz ao ver torna-se público todo carinho que ele recebeu do seu padrinho Cornelinho e da consideração do seu amigo Orlando Parahym. Tive a feliz oportunidade de conhecê-los. Embora ainda criança,pude comprovar o amor incondicional do padrinho Cornelinho (eu assim também o chamava),e o Dr.Orlando, que foi médico em Salgueiro, pelo seu cumprimento ético profissional com seus pacientes, inclusive com a minha mãe... praticamente salvou a sua vida. Um abraço carinhoso, da amiga Socorro Tamarindo.
ResponderExcluirDona Socorro e familiares, agradeço por terem contribuído com o artigo e por terem cedido documentos que sei o quanto são valiosos para vocês. Agradeço, em especial, à Bebete ;-) Um abraço em seu Edson e dona Maria ;-)
Excluir